por Thales Mileto
Era apenas mais um dia,
mais uma mudança, mais uma casa, outra casa, outro lar, outras pessoas, ou
seriam as mesmas pessoas, pelo menos elas pareciam sempre às mesmas pessoas, só
que em lugares diferentes. Na verdade era só mais uma casa que eu iria morar, apenas
mais uma casa em Florianópolis, era apenas mais uma bosta de uma mudança, era a
ânsia de encontrar o que ainda não encontramos com o receio de lidar com o que
não queremos, eu era apenas uma ilha morando dentro da ilha que se localiza na
ilha.
Enquanto a lua dava voltas
em trono da terra, que ao mesmo tempo dava voltas em torno de si e do sol, eu
apenas dava as costas para aquelas pessoas, que não tiveram a sorte de ter
morrido e continuavam a viver dentro daquele ócio eterno, e mesmo com tantas
voltas que o mundo dava elas continuavam ali, paradas, observando, prestando
atenção em cada passo dado por mim, em cada caixa que eu carregava, fazendo
comentários, previsões, imaginando como seria a vida dali pra frente. “Coitado,
fazendo tudo isso sozinho” disse alguma senhora “coitado nada, não se preocupe
com ele, isso é trabalho braçal e ninguém nunca morreu disso” respondeu outro
senhor, eram comentários atrás de comentários, no final era tanta merda falada
que não sobrava porra nenhuma.
Depois de um dia todo de
trabalho duro em um domingo quente, eu não tinha tempo, nem paciência para
futilidades e besteiras que passavam por aquelas mentes débeis, que achavam que
minha vida era um reality show, na verdade tudo que eu desejava eram: um banho
e uma bela noite de sono, e esse sono me conduziu pela escada que levava a
porta de entrada de casa e depois para o meu chuveiro e cama.
Enquanto isso, do outro
lado da rua, e longe de minha cama, um par de olhos, mais negros que a noite, observava
tudo o que acontecia, a cada trago de vinho barato os olhares, daquele par,
vinham carregados de desdém. Para ela tudo aquilo pelo que aquelas pessoas
destinavam a sua atenção, inclusive eu, era apenas mais uma merda no meio de tanta
merda espalhada por toda aquela ilha, era apenas mais um fato tolo e
superficial de um mundo pós-moderno de pessoas pré-globalizadas, achando que
qualquer mero fato desinteressante era informação.
Por coincidência do
destino, aquele mesmo que eu não acredito, ou apenas obra do acaso, a janela do
quarto da dona daqueles olhos negros e postura ácida dava de frente para a
janela de meu quarto, na verdade o meu quarto ficava no segundo andar da casa,
pois a garagem ficava no primeiro, já o quarto daquela garota ficava no térreo,
já que sua casa era térrea, além de ser bem maior do que a que eu morava, com
cômodos mais espaçosos, móveis planejados e as paredes brancas, que davam
leveza que ela tirava ao chegar ao ambiente.
A madrugada era fria, mas
meu corpo estava quente, e mesmo cansado o sono não era meu amigo naquela
madrugada, o sol estava se preparando para acordar e eu ainda não havia
conseguido pregar os olhos, algo me tomava enquanto eu virava de um lado para
outro na cama, era uma força, uma angustia, que brotava dentro do meu peito e
florescia como o algodão que um dia floresceu para depois ser transformado naqueles
lençóis, verdade é que eu sentia desde que acordei, era uma sensação, uma
vibração, eu tinha a impressão de que nada seria com o antes e sábia que meu
corpo desejava aquela premonição. “Páaaaaaaa” pulei da cama ao escutar o
estrondo na janela do meu quarto, já havia passado das 3 da manhã, corri para
ver o que era aquilo, quando abri a janela tinham apenas alguns cacos de uma
garrafa de vinho barato que havia sido arremessada, quando olhei para baixo vi
apenas um vulto no quintal vizinho. Eu não podia fazer mais nada, só me restava
voltar para a cama e tentar dormir.
A luz do sol que entrava
pela fresta da janela era o aviso que mais um dia de labuta vinha com ele e
após um dia maldito, à noite mal dormida interferia no meu dia e no meu humor,
tanto que o café doce amargava minha boca e luz do sol cegava meus olhos. Fechando
a porta de casa para ir para o trabalho lembrei-me do incidente da madrugada
passada e resolvi ir falar com um daqueles com quem eu não queria, o meu
vizinho, tinha que alerta-lo sobre tal vulto em seu quintal e a garrafa
arremessada em minha janela.
Eram quase 7h30 da manha,
eu já tinha engolido o meu café e agora estava parado na frente do portão todo
fechado, parecia uma muralha de madeira, isso não me surpreendia, era difícil
manter a privacidade diante de tantos fofoqueiros, mesmo assim nem toda madeira
do mundo poderia salvar a sua privacidade daqueles olhos sedentos pela vida
alheia. Apertei três vezes seguidas a campainha, uma em seguida da outra, para
tentar demonstrar a minha impaciência, o silêncio começava a me incomodar, mas
em um instante, do nada, toda aquela impaciência, medo de perder o ônibus para
o trabalho, tudo parecia ter sumido, em seus lugares aquela sensação voltou a
habitar o meu corpo, a vibração de dentro para fora e fora para dentro
arrepiava cada pelo em meu corpo, de repente, do nada, a maçaneta do portão
começa a girar, e parecia que o mundo havia começado a girar junto com aquela
maçaneta.
A porta embutida no portão
começou a abrir devagar, quase que sonolenta, foi quando um anjo de vestido
branco brilhou em minha frente, e tudo que era sem cor passou a ficar colorido,
era como se as portas do empírico se abrissem para mim e me convidassem para
entrar. Com o cabelo preto e Chanel, era ela a dona daqueles olhos negros que
me fuzilavam na noite passada. O olhar de sono não tirava a agressividade, petulância,
loucura e a provocação de quem cuspia na cara de Deus e do diabo, ela era mais
uma jovem com fome e vontade de viver sem se entreter com o mais do mesmo da
sociedade brasileira, onde as panelas são amassadas, mas as solas estão intactas
e a rotina continua a ser rotina.
Aquelas íris divinas e
diabólicas me hipnotizaram e me invadiam em um olhar com as sobrancelhas quase
rasteiras, onde me examinava de cima abaixo e me despia daquela calça jeans
maltrapilha e básica, da camiseta cinza e sem estampas e do all star creme
chegando ao meu ego e o segurando com as suas mãos, me libertando do medo de
sentir todas aquelas vibrações.
De repente uma figura
assustadora e sombria apareceu atrás daquele anjo de vestido e as trevas
cobriram as luzes e uma voz falou “pode entrar Amanda, eu falo com ele” a ela
só restou entrar deixar um sorriso daqueles de lado, com vontade de quero mais,
enquanto seu pai me interrogava para saber o que eu estava fazendo lá, depois
me virava às costas quando eu lhe contava sobre o incidente da madrugada
passada.
A figura, que ontem era um
poço de negatividade e que hoje parecia à personificação do paraíso me olhava
distante virar as costas para tentar pegar o ônibus para o trabalho, com um
olhar cheio de intenções, mas sem nenhuma certeza. Mesmo atrasado e correndo o
risco de perder ônibus para o trabalho, o grande e persuasivo Jornal
Centenário, do qual fica localizado no centro, nada parecia importar naquele
momento, nem mesmo o raro domingo de folga perdido com a mudança, o sentido na
minha vida acabou e renasceu com aquele anjo de pernas mais brancas que o seu
vestido, com íris mais negras que seu cabelo, com sorriso mais provocante que
seu corpo, era uma ninfa de uma floresta que já não existe mais, que foi
desbravada e destruída pelos portugueses, e que agora habita a Califórnia
tupiniquim e seduz os tolos, como eu, com o seu canto nos leva para o mar e
quando nos damos conta não sabemos mais como voltar.
Continua ...
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